quinta-feira, setembro 16, 2010

Proposta de revisão constitucional do PSD: abrir as portas à privatização da RTP?!

Como os habituais leitores deste blog bem sabem, evito imiscuir-me em questões demagógicas e políticas nos artigos que tenho escrito. Não obstante, creio que, por esta vez, a actualidade impõe que esta questão não passe ao lado da opinião pública e, em particular, dos leitores desta página. Tudo por causa da controversa proposta  de revisão constitucional que o PSD insiste em defender, onde na redacção do ponto 6 do artigo 38º  passa a constar (citação) «(...)a estrutura e o funcionamento dos meios de comunicação social do setor público, quando existam, devem salvaguardar a sua independência (…)». Qualquer cidadão que domine a Língua Portuguesa compreende que a questão central se resume a duas palavras: «quanto existam», colocando em causa a obrigatoriedade do Estado assegurar o serviço público de rádio e televisão, detendo um grupo de comunicação social pago e gerido com dinheiros públicos (a RTP - Rádio e Televisão de Portugal). O que, implicitamente, coloca em cima da mesa a possibilidade de o serviço público passar a ser oferecido por privados -  levando a um processo de privatização do grupo RTP.


A meu ver, o Estado deve manter e assegurar a manutenção de órgãos de comunicação social detidos pelo próprio Estado, desde a imprensa escrita à rádio, à televisão e a outros meios, sempre que os mesmos ofereçam conteúdos com qualidade e importância reconhecidas, mesmo que a sua disponibilização não seja economicamente viável. Já uma empresa privada tem sempre objectivos económicos, tentando maximizar o lucro mesmo em situações em que as populações possam ser afectadas negativamente pela  redução/eliminação de serviços não vantajosos para a empresa. Neste contexto, cabe ao Estado assegurar a manutenção de serviços públicos que assegurem o acesso universal das populações a esses mesmos serviços, mesmo havendo situações em que, do ponto de vista estritamente económico, apenas dão prejuízo. Assim, apesar de não ser o serviço público ideal, a RTP não deixa de ser uma marca de qualidade na comunicação social portuguesa, fornecendo conteúdos que, de outro modo, não seriam disponibilizados aos portugueses na rádio ou na televisão, uma vez que teriam custos demasiados elevados ou teriam um público-alvo demasiado restrito para que uma empresa privada se interessasse na sua divulgação.

Se olharmos para o universo RTP, a rádio e a televisão pública oferecem conteúdos destinados não só ao público em Portugal, como também aos emigrantes portugueses e lusófonos espalhados pelo mundo, através da RDP Internacional e da RTP Internacional. Numa perspectiva estritamente financeira, não faria muito sentido manter serviços destinado a um público-alvo disperso pelo mundo, onde não seria viável manter publicidade destinada a esse público, bem como manter programas com audiências relativamente baixas. Voltando à realidade nacional, a RTP tem uma rádio destinada a música erudita e a programas culturais (Antena 2), tem uma rádio para jovens (Antena 3), com programas de autor e que aposta na divulgação de bandas portuguesas sem grande expressão comercial, tem a RDP África, que difunde conteúdos orientados para as populações africanas e de origem africana. Acresce-se (correndo o risco de me repetir) o facto de os vários canais disporem de conteúdos que muito dificilmente seriam mantidos num operador privado por não trazerem receitas. Que rádio privada passa música clássica/erudita? Que rádios privadas (salvo raras e honrosas excepções) apresentam programas de autor destinados a determinadas elites culturais, divulgando expressões artísticas, nomeadamente musicais, destinadas a "imensas minorias", sem pressões de editoras discográficas e fugindo a "tops"? Que rádio privada assegura programação destinada aos portugueses residentes no estrangeiro, bem como aos inúmeros lusófonos espalhados pelo globo, acessível não só via Internet, como também via satélite e até, algumas horas por dia, na Onda Curta para os PALOP, Brasil, América do Norte, Venezuela e até Médio Oriente/Índia? Aos caros leitores do blog indago que empresa privada estaria interessada em manter estes serviços...

Por outro lado, creio bem que os actuais operadores privados de rádio e televisão não veriam com bons olhos uma eventual privatização da RTP, sabendo que tal operação implicaria o alargamento do mercado publicitário aos canais do grupo RTP, aumentando a concorrência publicitária e, por inerência, reduzindo as receitas, quer nas rádios, quer nas televisões privadas. Se o mercado publicitário continua em crise, as rádios (e as TVs) têm maior dificuldade em vender tempos de antena comerciais. Aumentando a oferta de serviços privados, a situação tende a agudizar-se, complicando a situação económica das empresas detentoras das estações.

Política aparte, é sabido que o PSD tem insistido (não só agora, mas ao longo de anos) na privatização de vários serviços do Estado. Refira-se que, da direita à esquerda do partido, os vários partidos com assento parlamentar discordam da potencial privatização da RTP, o que indicia que a opinião maioritária dos políticos portugueses (e provavelmente do cidadão comum), segue em contrário às pretensões dos sociais-democratas. Sem entrar em questões políticas, é de aplaudir o movimento contra a privatização da RTP lançado por militantes do Partido Socialista. Diria que, passando da classe política para o cidadão comum, que seria interessante que um grupo alargado de defensores do serviço público de rádio e televisão, desde figuras públicas ao cidadão comum se juntasse ao movimento e/ou criasse um movimento independente semelhante que salientasse as características próprias de um serviço público de rádio e televisão, marcando firmemente uma posição contra a eventual alienação de empresas públicas de comunicação social, a começar pela RTP.


P.S. - Esperemos que o líder do PSD, Pedro Passos Coelho que será entrevistado  hoje (ironicamente) na RTP 1, se digne esclarecer o que faria à comunicação social do Estado, num hipotético cenário de liderança do País, mormente em que modelo defenderia a privatização da RTP e como assegurava o serviço público de rádio e televisão.

1 comentário:

Luis Melo disse...

Recentemente o PSD tornou pública a sua proposta de alteração à Constituição da República. Muitas vozes se levantaram em relação a um tema que é tabu na nossa sociedade: a privatização da RTP, ou a não existência de meios de comunicação social do Estado. Em vez de olhar para a proposta com preconceitos, vale a pena reflectir um pouco.

No início do séc XIX começou a luta pela liberdade de imprensa, pelo facto de esta servir para contrariar o despotismo dos governos. A imprensa era um meio de fiscalização dos que detinham o poder. Os maiores defensores de uma imprensa livre diziam que ela ajudava a “controlar a auto-preferência habitual de quem governa” e obrigava os poderosos a respeitar e servir o povo.

Estas linhas mestras desaconselham que haja meios de comunicação social tutelados pelo governo. Senão, que é feito da opinião livre que pode fiscalizar o governo? Temos a liberdade de imprensa como dado adquirido em Portugal (desde 25/04/74), mas o facto é que existe auto-censura. São os próprios jornalistas que se censuram a si próprios. A (in)consciência diz-lhes que há muito em jogo: a reputação, a família, o emprego ou o processo judicial iminente. Essa auto-censura obriga-os amiúde a pensar duas vezes.

O dever dos governos é zelar pelo interesse comum, mas o facto é que esse papel tem cabido mais à imprensa. Ela reprova incompetentes, déspotas ou tiranos que tentam asfixiar ou fugir à opinião pública. A imprensa livre expõe publicamente os abusos do poder político. Ao contrário, sabemos como a imprensa que depende do governo pode ser usada como veículo de propaganda de interesses político-partidários que procuram influenciar a opinião pública.

Outra questão que se tem levantado também, é a do princípio da universalidade subjacente ao serviço público. O famoso princípio de que os canais de rádio e TV devem transmitir programas que abranjam uma vasta audiência e satisfaçam todos os gostos. Tem a RTP seguido esse princípio? Ou será que temos hoje uma TV pública que apenas tenta concorrer com as privadas, esbanjando o dinheiro dos nossos impostos.

Se querem manter uma TV do Estado, talvez seja melhor enveredar pelo caminho já sugerido por alguns: TV sem publicidade. Isto porque o que temos visto são os efeitos decadentes que tem o poder da publicidade sobre os programas de TV. A publicidade comercializa a estrutura e o conteúdo dos programas. O êxito é medido em termos de rendimentos publicitários e níveis de audiência.

Isto faz com que aumente o lixo televisivo: programas em que se transformam casos judiciais em peças barrocas de TV; novelas e séries cheias de cenas de sexo, adultério, traição e crime; Reality Shows onde abunda a devassa. E assim sendo perde-se o espaço para programas pedagógicos, cultura nacional, documentários sobre história… enfim, o tal princípio da universalidade.

O que se quer numa TV pública? É um canal que cultive a indústria de massas que produz ilusões e faz prevalecer a satisfação expressa em banalidades, reinar o pseudo-individualismo e encorajar as pessoas a não pensar em termos críticos acerca de coisa nenhuma? Queremos um canal que lute por audiências oferecendo programas de diversidade insuficiente, que duplique inutilmente tipos de programas? (Novelas, Reality Shows…).